sexta-feira, 21 de maio de 2010

CRIANÇA, A ALMA DO NEGÓCIO (VERSÃO REDUZIDA)

“ A tristeza perdida”- Allan V. Horwitz e Jerome C. Wakefield

Este livro nos faz pensar o como à tristeza foi concebida e vivenciada através dos tempos. Uma análise sobre a tristeza, sobre a doença mental, concluíram que a maioria dos pacientes não possuem distúrbios e que tudo não passa de um exagero por parte daqueles que detém o poder. Alerta para o crescimento de propagandas e anúncios direcionados aos consumidores e dos perigos de prescrever antidepressivos para crianças e adolescentes.
Trouxe um resumo do mesmo para vocês conferirem.

Os estudos antropológicos e sociológicos ajudaram a perpetuar a confusão entre tristeza normal e transtorno depressivo. Nos últimos anos, a depressão se transformou no distúrbio mais tratado por psiquiatras. Ao mesmo tempo, o consumo de antidepressivos — prescritos por médicos de todas as especialidades — aumentou significativamente. Para os professores Allan V. Horwitz e Jerome C. Wakefield, a psiquiatria contemporânea confunde tristeza normal com transtorno mental depressivo porque ignora a relação entre os sintomas e o contexto em que eles aparecem. No livro A tristeza perdida - Como a psiquiatria transformou a depressão em moda, os autores mostram que a tristeza, comum a todo ser humano, vem sendo tratada como doença, expõem os problemas dessa prática para a saúde e demonstram que essa confusão tem implicações significativas também para a sociedade como um todo.

Com uma lógica implacável, os autores apresentam um argumento persuasivo que tem importantes implicações na saúde pública. Integrando evidências históricas, filosóficas e psicológicas, eles desafiam as noções da psiquiatria sobre o que é normal e o que é patológico. O objetivo é mostrar como os profissionais de saúde mental podem evitar transformar em doença reações emocionais normais aos estressores da vida, ao identificar com precisão aqueles que sofrem de transtornos depressivos genuínos. "Esperamos que o livro encoraje os profissionais a agir e a dialogar entre si e com seus pacientes de forma mais rica, que permita maior compreensão e tratamentos melhores". Para eles, a psiquiatria fez avanços gigantescos nas últimas décadas, e hoje tem muitas técnicas eficazes à disposição para descobrir as causas dos transtornos depressivos.

Trata-se de um livro polêmico que deverá determinar discussões e pesquisas futuras sobre depressão. Resultado de extensa pesquisa e análise sobre o tema, o livro trata, em onze capítulos, de questões como o conceito de depressão, a anatomia da tristeza normal, a depressão no século XX, a importação da patologia para a comunidade, o crescimento dos tratamentos com antidepressivos e o fracasso das ciências sociais em distinguir tristeza de transtorno depressivo, entre outras. "O livro será o divisor de águas no desenvolvimento conceitual da psiquiatria", afirma Robert L. Spitzer, doutor em Medicina e professor do Instituto Psiquiátrico do Estado de Nova York.

No capítulo sobre o conceito de depressão, por exemplo, os autores mostram a predominância do transtorno depressivo e o crescimento do número de pacientes em tratamento. Segundo eles, estudos indicam que a depressão atinge, a cada ano, cerca de 10% dos adultos nos Estados Unidos e aproximadamente um quinto da população em algum momento da vida. Entre as mulheres, as taxas são ainda mais altas: cerca de duas vezes aquelas encontradas entre os homens. A maioria das pessoas deprimidas é tratada em ambulatórios, onde o tratamento da depressão cresceu 300% entre 1987 e 1997. Em apenas vinte anos, o percentual total da população em tratamento de depressão aumentou 76%. Em alguns grupos, o aumento foi muito maior: o diagnóstico de idosos com depressão, por exemplo, cresceu 107% entre 1992 e 1998. Os autores falam também sobre o crescimento assombroso da prescrição de antidepressivos. Durante os anos 1990, os gastos com esses medicamentos cresceram 600% nos Estados Unidos e, no ano 2000, excediam US$ 7 bilhões anualmente.

O livro traz também as estimativas do custo social da depressão. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2020 a depressão terá se tornado a segunda maior causa de incapacidade no mundo, ficando atrás apenas das doenças cardíacas. A OMS estima que a depressão já é a principal causa de incapacidade em pessoas entre 15 e 44 anos. Nos Estados Unidos, os economistas calculam que a depressão é responsável por um custo de US$ 43 bilhões por ano.

Por fim, os autores demonstram que a tristeza é parte inerente da condição humana e, portanto, não pode ser confundida com transtorno depressivo. "Quando a ciência nos permitir obter mais controle sobre nossos estados emocionais, inevitavelmente teremos de avaliar se a tristeza normal tem características reparadoras ou deve ser banida da nossa vida", concluem.

Sobre os autores:

Allan V. Horwitz, Ph.D., é professor de Sociologia e diretor da área de Ciências Sociais e Comportamentais da Universidade Rutgers. É autor de artigos e livros sobre vários aspectos das doenças mentais, entre eles The social control of mental illness [O controle social da doença mental], The logic of social control [A lógica do controle social] e Creating mental illness [A fabricação das doenças mentais].

Jerome C. Wakefield, Ph.D., é doutor em Serviço Social e professor honorário de Serviço Social da Universidade de Nova York. Também lecionou nas Universidades de Chicago, Columbia e Rutgers. Ele trabalha com a convergência entre a filosofia e as profissões da área de saúde mental e escreveu inúmeros artigos sobre o diagnóstico de transtornos mentais.


quinta-feira, 20 de maio de 2010

“ Pra lá de Teerã”- Demóstenes Torres

 A admiração simpática dos brasileiros pelo presidente Lula certamente deve crescer depois da fantástica operação diplomática em Teerã. Caso o documento assinado entre o Brasil, a Turquia e o Irã seja mesmo o mapa do caminho para um acordo de papel assinado que ponha fim à pretensão do país fundamentalista islâmico de se tornar uma potência nuclear, Lula pode se converter em referência da nova ordem mundial.

No plano interno, a vitória faria do presidente espécie de aiatolá no processo eleitoral de 2010. Já hipótese mais provável de ficar provado que o acordo é apenas medida protelatória com a finalidade de dificultar a manobra americana de aprovar nova rodada de sanções contra o Irã no Conselho de Segurança da ONU, o presidente Lula ainda assim fica bem na fotografia. Terá argumento de sobra para dizer que tentou, mas não houve humildade das superpotências para sustentar o desenvolvimento do acordo por ele encetado.

Pode inclusive se por no papel do cônjuge enganado. Argumentar que foi vítima da traição de um mercador persa depois que refrescarem a sua memória de que os EUA, a França e a Rússia o advertiram antes do desembarque em Teerã de que o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, é um chicanista profissional.

O presidente foi classificado de ingênuo pela chefe do Departamento de Estado Americano, Hillary Clinton. Nada disso, madame! Lula fez parte de um jogo cujo resultado foi antes combinado. No tabuleiro do Oriente Médio não há a menor possibilidade de o Brasil mediar qualquer interesse. A região está geográfica e politicamente fora da nossa área de influência. Isso ficou provado na viagem que o presidente fez a Israel e a Cisjordânia. Nenhum dos dois lados deu a mínima para a tentativa de Lula de se imiscuir no conflito.

A tal proeminência diplomática demonstrada em Teerã foi possível porque convergiu a necessidade dos presidentes do Irã e do Brasil de manejar o tempo. Ahmadinejad precisava de fôlego extra para conseguir temporariamente inviabilizar as sanções da ONU. Lula, que não tem muito a perder, aproveitou a oportunidade para usar o tempo que lhe resta de mandato e se posicionar como candidato a secretário-geral das Nações Unidas.

Caso o documento assinado no Irã seja o embrião de um acordo real com a Agência Internacional de Energia Atômica, o presidente Lula passará a ter chances objetivas de tirar o emprego do discreto coreano Ban Ki-moon no final de 2011. Outras condições convergem para que Lula assuma o mais alto grau da diplomacia mundial. Em primeiro lugar o cargo é tradicionalmente reservado ao terceiro-mundo e ninguém melhor do que o Brasil, que possui a liderança, ainda que imaginária, dos países pobres.

Vale notar que a sua simpatia pela África, inclusive por provectos e sanguinários ditadores, tem muito potencial de voto na Assembleia Geral da ONU. Lula ainda tem a condição de unir à nova imagem de pacificador a histórica bandeira de combate à fome e à pobreza, temas caríssimos ao palavrório do organismo internacional.

O Brasil dificilmente vai conseguir ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. A medida implica em uma reestruturação formal que nenhum dos cinco membros que decidem se dispõe a fazer. Definitivamente não estão dispostos a distribuir parcelas da alta hierarquia que lhe confere o poder de veto. Por outro lado nem tudo está perdido. Bem pra lá de Teerã, Lula sonha com a cadeira de "moderador do mundo" em endereço qualificado em Manhattan com vista para o Rio East.

 
 

Demóstenes Torres é procurador de Justiça e senador (DEM-GO)

Fonte: blog Noblat

quarta-feira, 19 de maio de 2010

“ Alfabetização” segundo Telma Weisz


Ela é a mais respeitada especialista em alfabetização do país. Em sua trajetória profissional, Telma Weisz viveu o conflito de ter trabalhado durante anos numa perspectiva mais tradicional, até ter contato com as ideias da psicogênese da língua escrita. "Aí fiquei furiosa comigo mesma", revela a educadora. Desde então, mudou seu olhar sobre os alunos, percebeu que não se pode subestimar a capacidade intelectual de nenhuma criança, aprofundou-se como ninguém no assunto e, dona de uma generosidade sem igual, dedicou-se a transformar a prática de milhares de professores alfabetizadores por meio do principal curso de formação em Alfabetização do Brasil, o Profa. Hoje, ela supervisiona a versão paulista do programa, o Ler e Escrever, da Secretaria Estadual da Educação. Nesta entrevista a NOVA ESCOLA, Telma abusa de exemplos cotidianos para mostrar equívocos, muitos deles cometidos no passado por ela mesma, que ocorrem na árdua tarefa de ensinar a ler e escrever. E, o mais importante, explica por que eles acontecem, com a autoridade de quem soube, por meio do conhecimento científico, refletir sobre a própria prática para melhorá-la.


Ainda há professores que não transmitem informações às crianças por pensar que elas aprendem sozinhas? Qual é a origem dessa dificuldade?


Telma Weisz Na verdade, isso tem a ver com a própria concepção de ensino. Antigamente, todos tinham a ideia de que ensinar era transmitir informações. Nos últimos 30 anos, quando começamos a descobrir que ensinar é criar condições e situações para a aprendizagem e quando os professores ouviram falar, sem aprofundamento, que as crianças constroem seu conhecimento, muitos acharam que bastava o contato com as letras e o material escrito para que o conhecimento aparecesse naturalmente, por geração espontânea.


Não sei se ainda há quem pense assim. Eu espero que não, pois é um equívoco. O papel do professor é ser aquele que sabe mais dentro da classe e que valida a informação que circula. Em uma sala, todos estão em atividade intelectual, todos falam, todos elaboram ideias e constroem conhecimento. Não ao mesmo tempo - e esse é outro equívoco -, mas todos têm a oportunidade de expressar o que pensam. A validação deve acontecer, porque todos os saberes que estão sendo construídos são provisórios, elaborados por meio de um processo permanente de aproximação com o conhecimento objetivo.


A interpretação enviesada do construtivismo também tem a ver, em parte, com o fato de que a teoria da psicogênese foi popularizada no Brasil por um conjunto de vídeos de entrevistas com as crianças. O entrevistador, que no caso era eu, buscava tornar visíveis as hipóteses que elas formulam quando estão aprendendo a ler e a escrever. Como o objetivo era deixar que os professores vissem-nas pensando em voz alta, a intervenção era pequena. O que foi mal compreendido é que aquilo não era uma situação de ensino nem de pesquisa. Era uma tentativa de ilustrar o que estava no livro [Psicogênese da Língua Escrita, de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky] e que não era de fácil compreensão. Esses mal-entendidos fizeram com que muitos tivessem dúvidas não só sobre informar ou não, mas sobre o que informar. E essa é uma questão delicada porque não há um guia de coisas permitidas ou proibidas. Depende das circunstâncias e daquilo que as crianças pensam em cada momento.

Como essas dúvidas se revelam na prática?


Telma Por exemplo, se você tem um aluno que está escrevendo uma letra para cada sílaba e ele pergunta "qual é o MI", você pode dar duas respostas. A primeira é: "MI é o M e o I". E a segunda: "O que você quer escrever?", ajudando-o a encontrar uma resposta que caiba na estrutura teórica com a qual ele está trabalhando. Se o menino já está escrevendo alfabeticamente, a situação é outra, mas também tem suas características. Certa vez, um outro me perguntou "Como se escreve lã?". E eu disse "L, A, til". Quando vi, ele havia escrito "balãsa". Dei uma informação errada, porque não tive o cuidado de perguntar "para escrever o quê?". Há uma quantidade enorme de informações que cabe ao professor oferecer, mas é preciso ter condições e critérios para saber quais estudantes podem aproveitá-las. Isso só se consegue fazendo avaliação constante da classe.


Há muitos anos, em um trabalho de pesquisa, observei uma menina que estava repetindo a 1ª série havia cinco anos. A professora, naquele dia, apresentava à classe o alfabeto (para aquela aluna, pela primeira vez). A garota teve uma crise descontrolada de choro e, quando se acalmou, disse "eu sempre saio da escola no meio do ano porque não consigo aprender as letras. Mas eu não sabia que eram tão poucas. Se eu soubesse, não teria ficado tanto tempo aqui até aprender." É uma informação simples, mas se não é dita, como ela vai saber? Outro exemplo: uma criança pergunta "cozinha é com S ou com Z?" O que você faz? Diz a ela "pense para descobrir?" Não tem como pensar para descobrir. Você tem duas alternativas: mandá-la ao dicionário, o que, em determinadas circunstâncias, é uma perda de tempo, ou aproveitar a situação para explicar que é com Z, mas que, muitas vezes, o mesmo som pode ser com S, ainda que entre vogais. Assim, é introduzida uma série de informações que nem todos talvez possam utilizar, dependendo das condições do grupo. Mas, de qualquer maneira, se isso não vier do professor, de onde virá?


O que acontece quando não nos colocamos na perspectiva do aluno?


Telma "Cegamos" o aluno. É porque somos alfabetizados que ouvimos e vemos coisas que, para os que ainda não sabem ler e escrever, não estão lá. Um exemplo simples: muitos professores estão convencidos de que o branco entre as palavras é uma coisa que se pode escutar. Isso só pode acontecer a uma pessoa cuja percepção da relação entre escrita e leitura está de tal maneira organizada em cima da sua própria competência leitora que nem passa por sua cabeça que a fala é um contínuo e que jamais as crianças vão encontrar no falado os elementos que permitirão separar as palavras. E é claro que, dessa perspectiva, ao vê-las escrevendo tudo grudado, imagina-se que há uma disfunção, um problema. Não há. Trata-se de um momento necessário do processo. É preciso aprender a escrever assim para depois pensar na questão das separações.


Colocar-se no lugar do aprendiz é essencial para ensinar. Muitos falam em "palavras", como se as crianças soubessem o que é isso. Mas só gente alfabetizada, que já escreve e segmenta o texto, pode saber o que são palavras. E, às vezes, mesmo quando já fazem isso, recusam a ideia de que os artigos sejam palavras. Não estou dizendo para não usar a terminologia, mas é preciso ter claro que o que se está nomeando não é exatamente o que as crianças pensam que é. Certa vez, perguntei a uma menina o que era "palavra". Ela respondeu: "É o que está escrito na Bíblia." E eu insisti: "Por quê?". "Por que a Bíblia é a palavra de Deus". Imaginar que é obvio escrevermos exatamente como falamos, na mesma ordem, só acontece se não nos colocamos no lugar de quem está aprendendo. Porque, ao assumir essa perspectiva, somos obrigados a olhar de outro jeito. Intuitivamente, ninguém é capaz de fazer isso.


Só com pesquisa cientifica é possível compreender o outro que pensa diferente de você. A vida inteira, vi meninos escreverem coisas que, para mim, não eram escrita, não eram nada. Nunca parei para refletir sobre o que eles estavam pensando. Até o dia em que li sobre a psicogênese. E aí fiquei furiosa comigo mesma, porque já tinha visto aquilo tudo. Qualquer alfabetizador já viu crianças escrevendo com uma letra para cada sílaba ou com menos letras. Na verdade, não dávamos importância. Não olhávamos para isso como uma ação inteligente delas. Sem a ajuda da ciência, não se pode recuperar uma visão que já se teve, mas que foi apagada, numa espécie de esquecimento cognitivo.


Há muitos anos, quando trabalhei com professores indígenas no Acre, estava explicando a eles as hipóteses sobre a escrita e dizendo que, no inicio, as crianças pensam que, para escrever um pedaço do que se fala, basta um pedaço de escrita, que para eles é a letra. Eles me olhavam com estranheza, pois essa ideia de hipótese era muito estranha à cultura local. Até que um deles puxou uma folha antiga de sua pasta. Ele se chamava Norberto, havia feito um desenho e assinado NBT. Era recém-alfabetizado e ainda tinha o documento de suas próprias hipóteses. Foi uma situação interessante ver um adulto recuperar esse esquecimento. Nós não nos lembramos de quando não sabíamos calcular, escrever, ler. Nós não temos a memória viva do que é ser alguém que tem de aprender, que não sabe nada sobre determinada coisa. E os professores, como tais, só podem recorrer ao conhecimento cientifico para recuperar isso. Porque, via bom senso ou afetividade, não se chega a lugar algum.

Quais são os equívocos mais comuns na escolha das intervenções para fazer a turma avançar nas hipóteses de escrita?


Telma Vejo duas versões sobre isso. Em uma delas, a mais tradicional e frequente, mostra-se aos silábicos quais letras faltam, imaginando que isso os ajuda a chegar a uma hipótese mais avançada. Há uma dificuldade enorme de aceitar e deixar no caderno uma escrita que não esteja ortograficamente correta. "O que os pais vão pensar?", "o aluno achará que está certo", "vai fixar o erro". Na verdade, falta compreensão da diferença entre trabalhar o processo de aprendizagem e trabalhar sobre o produto que a criança está realizando. Toda a tradição de correção com caneta vermelha e de cópia dos erros vem daí – existe o não saber, o saber errado e o saber certo. E é claro que isso corresponde a uma concepção de aprendizagem, para a qual o ensino, por sua vez, cuida de evitar que se fixem na memória ideias erradas. Na visão construtivista, com uma abordagem psicogenética da alfabetização, fica claro que aquela escrita, errada segundo os padrões convencionais, faz parte de um processo do aluno. E que, naquele momento, é preciso estimular o máximo possível a reflexão sobre o que se escreve. É possível e necessário subsidiá-lo para ajudá-lo, o que é muito diferente de dar informações para obter um produto correto.


A segunda versão é uma leitura parcialmente equivocada do que chamamos de conflito cognitivo. Ou seja, o que faz um menino, que está lá, bem satisfeito da vida, escrevendo uma letra para cada sílaba e conseguindo se virar assim, abandonar essa hipótese que, do ponto de vista teórico, é tão elegante? Como é que ele avança? Além da hipótese de que, para cada vez que abrimos a boca, usamos uma letra, ele tem outras, como a de que não pode escrever uma mesma letra repetida, escrever com poucas letras e, de forma alguma, escrever com uma letra só. Mas, para alguns, duas letras também é muito pouco. A média estatística da exigência é em torno de três letras. O que acontece com uma língua como o português, com uma quantidade enorme de palavras dissílabas? Toda vez que a criança escreve um dissílabo, tem um problema, pois precisa colocar alguma coisa para não cometer um "sacrilégio". Essa contradição entre os esquemas explicativos que ela tem para a leitura e a escrita é que dá origem e espaço ao que chamamos de conflito cognitivo.


A partir dessa explicação, os professores fazem uma assimilação de que é preciso produzir situações conflitivas o tempo todo. Mas o conflito ou é do aprendiz ou vira uma conversa sem nexo para ele. Uma das atitudes equivocadas mais clássicas nessa linha é mandar contar os pedaços de uma palavra falada. Por exemplo, para "borracha", bater três palmas, uma em cada sílaba. Então, o professor escreve a palavra, pergunta quantas letras tem e diz: "Você pensa que abrimos a boca três vezes e que é preciso colocar três letras, mas eu estou mostrando que não é, e que borracha, no papel, tem oito letras". Dependendo de em que nível os meninos estejam, isso não faz o menor sentido. E certamente não fará quando estão colocando três letras. Pode ser em uma transição, mas aí não é necessário ficar contando quantas vezes a boca abre ou quantas letras a palavra tem. A própria criança começa a batalhar para colocar as letras. Ou você pode – e para isso é preciso conhecê-la intelectualmente – dizer: "Você sabe fazer melhor do que isso. Pense mais um pouco".


Comum a ideia de que, na leitura de textos memorizados, o importante é guardar a grafia das palavras. Isso está certo?


Telma Não está clara, para quem pensa dessa forma, a importância do trabalho com textos memorizados. Em primeiro lugar, não é qualquer texto que pode ser utilizado. Deve ser um texto estável, não o segundo parágrafo da história da Bela Adormecida. Existe um vasto repertório infantil, naturalmente memorizado. São versinhos, parlendas e trava-línguas, usadas em brincadeiras de roda e jogos verbais, que as crianças já sabem ou podem aprender oralmente na escola, usados em dois tipos de atividades muito interessantes. Uma é juntar duas delas (com níveis próximos de conhecimento, de forma que uma possa contribuir com a outra) para produzir uma escrita. Por exemplo, "a galinha do vizinho bota ovo amarelinho". Como as duas sabem de memória, tudo o que têm de intercambiar é que letras colocar e onde. Se estivessem redigindo um texto inventado, não teriam um problema comum para resolver. Mas sendo um texto estável, tomam decisões em função desse conhecimento prévio.


Outro tipo de trabalho é pedir que acompanhem, sabendo o que está escrito em cada verso, a leitura que alguém faz. Elas sabem que, na primeira linha, está escrito "a galinha do vizinho" e, na segunda, "bota ovo amarelinho", porque você informou. O que está por trás disso? O fato de que ninguém nasce sabendo que se escreve tudo aquilo que se fala, na ordem em que se fala, sem omitir nada. No início, imagina-se que só se escreve os substantivos. Se você tem "a galinha do vizinho", pensam que está escrito "galinha" e "vizinho". Para "bota ovo amarelinho", os mais avançados podem achar que está escrito "bota", "ovo" e "amarelinho", mas não necessariamente nessa ordem. É interessante pedir para localizar e ler pedaços, que são as "palavras" (mas, se você disser "palavras", eles procurarão as letras). Você pode perguntar onde está escrito "vizinho". Eles acompanharão o texto e começarão a localizar as partes do escrito e relacioná-las ao falado.


Esse tipo de atividade tem um papel extremamente importante e não aprendemos isso com a psicolinguística ou com a didática. Mas com a história da leitura, com investigações sobre como as populações antigas se alfabetizaram. Descobriu-se que, nos países nórdicos, por exemplo, toda a população era alfabetizada antes de haver escolas. Protestantes de orientação calvinista, eles tinham uma prática sistemática de acompanhar nos textos o que se falava nos cultos. Todos eram incorporados a esse universo em que a palavra escrita nos textos religiosos era tratada como uma coisa básica, essencial. As pessoas acompanhavam e decoravam para se aproximar desse objeto sagrado que era a escrita. Isso também aconteceu nas escolas religiosas judaicas e ocorre nas escolas religiosas muçulmanas - mas nessas duas instituições o aprendizado é apenas para os homens. Essa é a origem do trabalho que fazemos com textos memorizados. Já a memorização da forma escrita produz um efeito contrário. Sempre que os professores insistem na memorização da forma, os alunos, no esforço de lembrar como as palavras são escritas, produzem uma escrita caótica, e não a que produziriam se estivessem pensando em como se escreve.

O professor ainda acredita que, ao pedir que a criança acompanhe a leitura com o dedo, é capaz de fazê-la ler, sem observar se ela faz a relação do escrito com o falado?


Telma Sobre esse assunto, eu gostaria de fazer um mea culpa público. Certa vez, em um vídeo, depois de dizer muitas vezes "ler apontando com o dedinho", eu disse "ler com o dedinho". Muita gente repete isso, mas é uma bobagem. Ler acompanhando com o dedo serve, por exemplo, para aproveitar as possibilidades de uma atividade em que se leia um texto memorizado em público. Para um sarau de poesia, cada um tem um poema, leva para casa, pede ajuda à família, estuda, decora, aponta e tenta acompanhar, pois terá de se apresentar publicamente. Essa situação de focalização e de achar as partes do texto para se apresentar de forma adequada ajuda a descobrir em quem pedaço está escrito o quê. Agora, passar o dedo embaixo, em si, não é nada. A leitura da escrita não entra pela pele. Faz sentido apenas se houver reflexão sobre a grafia das palavras e se quem está lendo tenta ajustar aquilo que fala ao que está escrito. A forma adequada de organizar esse tipo de atividade é, por exemplo, todos cantarem uma canção juntos. De repente, o professor bate palma, pára numa determinada palavra e anda pela sala para ver se os dedos estão onde deveriam estar. Se não estiverem, ajuda a entender a posição certa. Se simplesmente diz "acompanhe com o dedo" e vai embora, não acontece nada. É preciso construir uma situação de aprendizagem e não ficar alisando papel. Para isso, é preciso estudar, buscar uma compreensão teórica que vai muito além de apenas saber identificar uma hipótese de escrita.

O que leva o professor a passar questionários em vez de promover comentários sobre as histórias lidas – como fazemos com amigos, quando lemos um livro?


Telma Ou pedir que façam um desenho, o que é ainda pior... O intercâmbio de ideias a partir de uma situação de leitura é algo que se faz apenas quando se tem uma experiência significativa e intensa como leitor. Quando lemos com ou para as crianças, tentamos constituir bons comportamentos leitores. Mas, para que você funcione como um modelo desses comportamentos, também precisa ser um leitor. Essa prática de ler uma história e depois pedir um desenho não tem nada a ver com a ideia de que o que se lê pode ser aprofundado, explorado, re-elaborado e compartilhado. Quando se tem a concepção de que a leitura não é simplesmente fazer barulho com a boca diante das marcas gráficas, sabe-se que ela produz em mim um impacto diferente do que em você, e que eu posso ter observado mais um aspecto do que outro e que podemos nos interessar por coisas diferentes. Esse espaço de intercâmbio é um espaço de trocas. Eu tenho visto perguntarem "de que pedaço você gostou mais?", "E você?". Assim, podam o intercâmbio real, que seria "quem achou uma coisa interessante que gostaria de contar aos amigos?". Se não souberem como fazer isso, você dá o modelo: "Lendo esse texto, eu pensei nisso, me lembrei daquilo, achei muito interessante a forma com que o autor escreveu, parecia que ele queria dizer uma coisa, mas queria dizer outra". É interessante fazer perguntas sobre aspectos de uma história que talvez poucos tenham entendido.


Há uma escritora que escreve em espanhol e tem uma série de livros sobre uma menina com uma amiga igualzinha a ela, mas que é gigante e aparece sempre que a garota precisa se proteger dos adultos. Só que isso nunca é dito explicitamente. Se você pergunta "quem é essa amiga grande?", "ela existe de verdade?", uma discussão louca surge na classe. Porque a personagem é, na verdade, uma representação do desejo da menina que se salva das maldades dos adultos. Mas as crianças não têm isso claro, apenas uma vaga intuição. Também é interessante perguntar "quem estava contando essa história? A personagem? A mãe dela?". Em geral, respondem que "é a escritora". E você pode questionar "mas aqui diz 'eu não gosto que me penteiem os cabelos porque arranca e dói'. A escritora disse isso?" Aparece, então, a ideia do narrador, que, para as crianças, é completamente misturada à do escritor.=== PARTE 4


O professor já compreendeu a importância dos livros na alfabetização. Mas ele oferece variedade de materiais de leitura?


Telma A variedade dos gêneros ultrapassa a ideia dos livros. Só no jornal e nas revistas há uma variedade enorme de gêneros. Se o professor não entende isso, usa esses portadores para recortar letras. Se entende, aprende como explorar os gêneros que há dentro deles. Os livros infantis, em geral, não têm uma grande variedade de gêneros. Têm, eu diria, subgêneros. São todos livros de ficção, mas alguns falam de mistério, outros de assombração ou de fadas. Mas acho que o problema é anterior: o professor tem de ler para si mesmo, para selecionar o texto, com critérios, antes de levá-lo para as crianças.


Eu acompanhei uma classe de alfabetização em que todos estavam envolvidos com os livros de histórias, menos um menino. Quando se falava em leitura e escrita, ele saía de perto e ia fazer outra coisa. Aparentemente, não tinha interesse. Até o dia em que chegou uma enciclopédia de dinossauros. Nesse dia, o menino ficou absolutamente fascinado, agarrou a enciclopédia. Ele não tinha alma de ficcionista, ele tinha alma de cientista. Precisamos reconhecer essas diferenças. Ele não tinha vontade de aprender a ler para ler sozinho as histórias infantis. Mas ele tinha muita vontade de aprender a ler para classificar os dinossauros, saber de que época eram e o que faziam. Aprendeu a ler em dias. É uma mudança de gênero, mas foi também uma mudança de mundo para o garoto.


Variar os gêneros é importante, mas não é uma ideia mecânica. Quando introduzimos um gênero novo, é preciso ter um sentido para isso. Para ler poemas, tenho um foco, se vou ler histórias, tenho outro. O que os diferentes gêneros permitem é abrir o leque das possibilidades de leitura e oferecer o discurso escrito em suas diversas formas. Porque, na verdade, quando as crianças ouvem o adulto ler, não aprendem só o enredo, mas também sua linguagem, que não é igual a dos outros. A variedade tem de ser selecionada em função daquilo que a turma pode aprender, das diferenciações que os alunos já têm condições de fazer e que você se sente em condições de oferecer.

Por que ainda é pequeno o acesso a materiais que favoreceriam, na produção de um texto, a busca de informações em diversas fontes?


Telma Há um medo mortal de trabalhar verdadeiramente com jornais porque se pensa que é um texto adulto. Isso não é verdade. Certa vez, vi uma professora fazer um trabalho muito interessante. Os meninos tinham de assistir o noticiário da TV e, no dia seguinte, ela levava o jornal impresso para a sala, para que encontrassem as informações sobre os fatos do dia anterior. Ler os títulos, o subtítulo da reportagem, uma parte inicial do texto é algo muito possível de fazer, especialmente quando se tem sensibilidade para escolher o quê. Você não vai, por exemplo, propor a leitura de uma reportagem sobre uma chacina. Mas pode ler sobre quem jogou no domingo, quem ganhou o campeonato ou a corrida. Quando alguém relata algo que viu, você pode perguntar se a turma deseja escutar a história contada no jornal impresso, mais detalhada. Eu sou uma defensora convicta da presença do jornal na sala de aula porque os fatos são a fonte da história. Nele, lemos sobre acontecimentos de países distantes. Com um mapa múndi na classe você aponta, por exemplo, onde ocorreu uma avalanche e aborda questões como o que é isso, por que acontece. Esse trabalho é fascinante.


Mas é preciso ter a inteligência das crianças em alta conta. Quando se espera mais, elas devolvem mais. Quando se espera pouco, elas devolvem um pouquinho. O fato de trabalhar no limiar superior faz com que avancem muito mais do que quando se pensa "elas não vão entender". É claro que sozinhas elas não entendem. Tudo isso vale para enciclopédias, jornais, textos de ficção, revistas. Mas é preciso fazer uma aposta alta. Não uma aposta cega, sem olhar se a turma está acompanhando. E, sim, a mais alta possível, ajustada àquilo que as crianças mostram que são capazes de pensar e fazer.

O professor encontra dificuldades em dar atividades diferenciadas para os que já estão alfabéticos e também precisam avançar? Como agir nesses casos?


Telma Isso é o mais fácil. Os já alfabéticos podem ler, escrever, produzir textos, ser envolvidos em projetos mais complexos. Estes não são o problema. O problema são os que ainda não compreenderam o sistema. Às vezes, há alfabéticos que não são leitores. Nesse caso, é preciso construir situações que ajudem a desembaraçar a leitura, que não é algo que vem sozinho. Não é porque uma criança colocou todas as letras que ela já sai lendo. Poucas fazem isso. A maioria precisa construir uma prática de leitura para se soltar. Tenho uma experiência recente com uma que estava escrevendo silabicamente com valor sonoro. Quando ela já sabia todas as letras, foi possível pensar em trabalhar questões como "essa letra serve para escrever esse som, mas é só essa? Tem mais? Você poderia colocar outra no lugar?" Então, ela avançou rapidamente para uma escrita alfabética, cheia de erros de ortografia, mas alfabética. Mas dizia "eu não sei nada porque escrevo, mas não sei ler. Eu escrevo nessa letra e tudo o que eu vejo está escrito numa letra que eu não conheço". Então, fiz uma tira de correspondência, com as letras de forma e de imprensa. Todas as vezes que não conseguia reconhecer uma letra, o menino via na tira. Mas isso empacava a leitura. Quando ele terminava a segunda palavra, já não sabia mais sobre o que era o texto. Passei a propor que lesse desse jeito e, depois de destrinchar todo o texto, voltasse a estudá-lo para ler rápido, pois só se entende o que se lê quando se lê rápido. Sozinho, ele se treinou, voltou e disse: "Estou lendo tudo". E estava mesmo. Porque, na verdade, ele não tinha se soltado da ideia de que era necessário ler todas as letras. Na medida em que pedi para que avançasse além dessa leitura letra por letra, ele teve de usar as estratégias de leitura. Isso fez com que ganhasse velocidade e compreensão. Conforme passou a compreender o que lia, a vontade de ler cresceu e a leitura melhorou. Esse é um ciclo virtuoso.


Ainda persiste a ideia de que as crianças só podem ter contato com histórias curtinhas, nunca lidas em capítulos?


Telma Essa mania de que tudo tem de ser pequenininho é uma deturpação da concepção de criança e, principalmente, um desrespeito enorme. Porque ela senta na frente da TV, vê uma novela em 180 capítulos, lembra de todos os personagens, quem casou com quem, quem brigou com quem e o que vestia em tal dia. As crianças não têm problemas de memória, quem tem problemas de memória somos nós. Elas têm tudo fresquinho na cabeça. Minha experiência pessoal é a de escolher livros pela grossura, ao contrário do que alguns fazem. Eu sempre escolho os livros mais grossos porque, se a história for boa, não quero que ela acabe! Esse lugar do leitor que tem prazer na leitura é o que o professor teria de encarnar. Para elas, uma história pequena é pobre e chata. É claro que histórias grandes podem ser pobres e chatas. Mas elas adoram ouvir uma história grande em capítulos, contados um por dia e, no fim da leitura: "tchan tchan tchan tchan, agora aguardem o capitulo de amanhã! Quem que acha que elas não gostam nunca experimentou. Elas são muito mais inteligentes do que os adultos porque, nesse momento da vida, tudo está para ser aprendido e a disponibilidade para a aprendizagem é enorme. Quando perdem isso é porque os adultos destruíram. O fracasso reiterado mata essa disponibilidade.

Como deve ser o trabalho do 3º ano em diante no que se refere ao aprimoramento da leitura e da escrita?


Telma Você já disse a palavra: aprimoramento. Em primeiro lugar, ninguém deveria chegar ao final da segunda série sem compreender o sistema de escrita e sem ler. Daí pra frente, todo o trabalho é de estabelecer objetivos cada vez mais complexos para a mesma coisa, que é ler e escrever. O nome do conteúdo não muda e, sim, o que está lá dentro. O que acontece é que muitos imaginam que, quando se é capaz de colocar todas as letras e ler alguma coisa, ainda que silabando, está encerrada a aprendizagem da leitura e da escrita. Uma prova de que isso não é verdade é que os meus alunos na pós-graduação estão aprendendo a ler textos acadêmicos, porque infelizmente as faculdades onde estudaram, em vez de deixá-los ler textos acadêmicos adequados à competência deles, criam as apostilas, simplificando o conteúdo, no pior sentido da palavra. Isso os impediu de construir a capacidade de ler textos de certo grau de complexidade, de um determinado gênero.


Aprende-se a ler e a escrever ao longo da vida toda. Não basta ser alfabético e ser capaz de ler um outdoor para ser alfabetizado. Quando entendemos isso, ajudamos os meninos a se aproximar de textos cada vez mais complexos. Esse trabalho os transforma em leitores cada vez melhores e de uma gama mais ampla de gêneros. E aprender por meio dos textos é condição para estudar os outros conteúdos na escola. Para quem não sabe aprender a partir de um texto escrito, o destino depois da quinta série é o fracasso.




Fonte: http://revistaescola.abril.com.br

“ O Brasil merece muito mais”- Paulo Rabello de Castro


TENHO SIDO questionado por muita gente sobre qual o candidato ou candidata "mais adequado" a suceder o presidente Lula. Com quem converso, simpatias à parte, dúvidas persistem sobre o perfil das propostas de cada um. Afinal, ainda falam como pré-candidatos, embora com importante currículo de bons serviços prestados ao país.

A dúvida dos eleitores reflete bem mais do que desconhecer a plataforma dos candidatos. O eleitor desconfia de que coisas importantes estão por acontecer. Saímos da "era Lula" para algo novo, com equipe que trará sua marca própria ao governo. Que marca será essa? O Brasil cresceu na foto internacional e suas oportunidades econômicas se multiplicaram. E se o candidato vitorioso puser todo esse imenso potencial a perder, por excesso de voluntarismo ou falta de criatividade?

O risco é enorme e os custos aumentaram porque agora "temos mais a ganhar ou perder...".

Em magnífico artigo ("O Brasil merece mais"), publicado anteontem, Abram Szajman, presidente da Fecomercio SP, coloca os pingos nos is, com coragem e lucidez. "O voto -lembra ele- não deve ser um prêmio, mas uma tarefa... pois o regime democrático não oferece, com a vitória eleitoral, um cheque em branco para o ganhador, de quem se espera o cumprimento de compromissos assumidos com o eleitorado". Perfeito. Mas Szajman nos alerta para o fato de que o debate amplo dos programas de governo acaba ficando em segundo plano, e o eleitorado, embrulhado por mensagens vazias e jingles eleitorais.

Desta vez, o risco é maior por causa do que está em jogo nesta década 2011-2020. A Fecomercio SP vem colaborando para mapear esses riscos da transformação do Brasil, que envelhece rapidamente, que ficou mais alfabetizado, porém não mais escolarizado diante dos países emergentes (que dirá frente aos desenvolvidos!) e que tem como desafio maior mudar o modelo de "alto consumo e endividamento" para um de crescimento com "alto investimento e sustentabilidade".

Como? A sociedade civil não quer mais esperar pelos candidatos. Passamos, nós mesmos, a desenhar esse futuro, a muitas mãos, num movimento espontâneo que surge com o nome de "Brasil Eficiente" e vem recebendo adesões de federações de comércio, indústria e de trabalhadores, do terceiro setor e de associações profissionais. A mensagem é simples: o país quer buscar máxima eficiência em todos os campos, inclusive dos governos, por que não?

Os candidatos serão convidados a debater uma espécie de decálogo do Brasil Eficiente.

Os compromissos:

1) exigir dos governos o equilíbrio fiscal e eficiência nos gastos que a lei dos mercados impõe às empresas e aos cidadãos.
2) aumentar o investimento de 18% para 25% do PIB, dobrando a renda pessoal em dez anos.
3) trazer a carga tributária para 30% do PIB até 2020, com simplificação radical dos impostos e da burocracia.
4) manter o gasto corrente sob estrita vigilância, com mais recursos para a infraestrutura, inovação e investimentos sociais.
5) mais poupança de longo prazo e reinversão dos lucros, democratizando o capital acionário e imobiliário.
6) estimular a formalização do emprego.
7) unificar a regras previdenciárias e equilibrar os benefícios sociais com a renda tributada aos que trabalham.
8) concentrar a ênfase educacional no ensino fundamental de qualidade.
9) Limitar a dívida pública, melhorar sua composição e, com isso, baixar os juros na corrente produtiva.
10) colocar o longo prazo na política, seja pelo ambiente, por uma Previdência com lastro e pelas alianças continentais do país.

Fonte: http://arquivoetc.blogspot.com

“ A conquista da velhice” – Lya Luft


"A velhice, que hoje tarda bem mais do que décadas atrás, pode ser bela, alegre e apreciada enquanto não for amarga"

Uma das melhores frases que escutei sobre velhice e envelhecer, porque realista e bem-humorada, foi: "Velhice? Eu acho ótima, até porque a alternativa seria a morte!" Não é em geral o que se escuta. Mesmo velhos que têm boa saúde e poderiam estar curtindo alguma coisa costumam se lamentar em lugar de viver. E, acreditem, sempre há o que fazer, aprender, renovar. Vai-se, é verdade, parte da energia (a lucidez, não necessariamente, e se a perdermos não saberemos: a natureza pode ser misericordiosa).

Para quando a inevitável velhice chegar, tomei como meu modelo, talvez inatingível, minha comadre, madrinha de um de meus filhos, minha amada amiga Mafalda Verissimo, viúva de Érico e mãe de Luiz Fernando. Sei que ainda hoje, esteja onde estiver, ela sabe de mim, me cuida. Se pudesse me aconselhar, como costumava fazer, haveríamos de dar juntas boas risadas.

Essa velha dama, que, como minha mãe, morreu aos 90 anos, detestaria ser lembrada com tristeza. Uma de suas marcas era o bom humor, que nessa idade, mais do que em todas, é essencial: divertidos eram seus olhos muito azuis revelando o interesse múltiplo e alerta, aberto o coração.

A gente não a visitava para lhe fazer companhia (sua casa abrigava família e muitos amigos), mas porque nós precisávamos dela, ela nos alimentava com seu interesse, nos animava com sua vitalidade. Lia todos os jornais, entusiasmava-se com novidades, e as que não aprovava lá muito eram comentadas, também, com seu jeito divertido. Mafalda sempre me fez refletir sobre a velhice que escolhemos ter, para além das inevitáveis transformações que de preferência não escolheríamos. Com ela entendi melhor que velhos não são isolados porque os filhos não prestam ou os amigos morreram, mas também porque se tornaram chatos demais: reclamando, querendo controlar, chantageando e cobrando.

A gerontocracia pode ser cruel: é urgente rebelar-se contra ela, se queremos conviver com os velhos. E, se queremos ser um dia velhos com quem os outros gostem de estar, é bom evitá-la a qualquer custo. Velhos, como todos nós, podem ser vítima de seu próprio preconceito – além da rejeição generalizada a tudo o que não for jovem e fulgurante. É comum encontrar alguém que bem antes da velhice já não diz duas frases sem acrescentar em tom lastimoso "na minha idade". Por que não encarar o tempo como transformação da beleza enérgica da juventude na serena beleza da velhice?

Hão de arquear as sobrancelhas, mas eu lhes digo que, se hoje me divirto mais do que aos 30 anos, espero aos 80 achar ainda mais graça em muitas coisas que, décadas atrás, me fariam arrancar os cabelos em desespero. Se alguém na velhice é realmente só, sem ninguém, nem vizinho nem conhecido nem parente nem mesmo o quitandeiro da esquina com quem falar, me perdoe: a não ser que uma tragédia tenha devastado sua vida sem deixar pedra sobre pedra, possivelmente faltou cultivar interesses e afetos, em vez de esperar por eles como obrigação alheia. Sinto muito: se o velho sempre bonzinho é um mito, o velho simpático, aberto e otimista é uma realidade. Quando comentei isso, alguém retrucou: "Mas todos morreram, não tenho ninguém da minha idade para conversar".

É bem possível e até provável, mas você nunca fez amizades com gente mais jovem? Nunca se abriu para o que há de estimulante no outro tempo da vida? Nunca se renovou, nunca se abrandou? Quem não tiver obsessão pela juventude perdida pode se interessar pela imensa variedade de assuntos que todo dia entram em nossa casa pelos jornais, pela televisão e – por que não? – pelo computador. E não me venham com "na minha idade".

Os grupos da chamada terceira idade podem ser divertidos, estimular amizades, fazer sentir que a gente não é a única nem a vítima do destino cruel... Mas, por favor, não botem as velhinhas a dançar com vestido de bailarina saltitando com balões nas mãos, ou para fazer teatro infantil. Não as maquiem em excesso, não as tornem caricaturas.

A velhice, que hoje tarda bem mais do que décadas atrás, pode ser bela na sua beleza peculiar; alegre na sua alegria boa; alerta na medida de seus interesses; procurada e apreciada enquanto não for amarga.

Enfim, que sejamos todos e todas Mafaldas Verissimo, a que até o fim nos amou, nos apoiou, nos divertiu, nos escutou, aquela a quem procurávamos pelo nosso próprio bem e que deixou uma saudade boa, não um vazio de sombra.

E assim, amiga, enfim te homenageei.

Lya Luft

segunda-feira, 17 de maio de 2010

A homossexualidade nos dias atuais

Trabalho em escola há trinta anos e nunca havia tratado de um assunto tão polêmico como a homossexualidade. Hoje quando percorro o ambiente escolar, mais os espaços coletivos, onde os jovens se encontram para um bate papo, percebo como a juventude trata o assunto. Não é fácil se dizer homossexual, na verdade exige amadurecimento e firmeza naquilo que escolhemos ser.

Uma vez um jovem chegou até mim, me pedindo ajuda de como ele deveria falar para os pais a sua orientação sexual.

Disse-lhe de forma firme e categórica: Em uma longa conversa. Não existe outra forma que o diálogo.

O rapaz devolveu com um sorriso, como quem me dissesse isso não resolve. Daí percebi que ele estava muito enrolado e comprometido com o que dizia. Na verdade ele me dizia, eu já vivo a minha opção sexual, não estou falando que não sei o que quero, estou um passo além do que você está prevendo.

Então conclui... E disse-lhe: - Você já está um passo a mais do que a maioria, que nem ao menos sabem o que querem. E tem mais, você não está só, tem um montão de pessoas iguais a você.

A vida sexual na verdade começa na adolescência e muitos confundem curiosidade com orientação sexual. A sexualidade é descoberta nesse percurso e tem gente que descobre que sente tesão por pessoas do sexo oposto e tem gente que descobre que sente desejo por pessoas do mesmo sexo. Não existe resposta ainda por que é que a maioria das pessoas é de um jeito ou de outro. E tem mais... Tudo que é diferente incomoda muito. Não importa o que seja, mas o incomodo aparece de forma gritante, como se fosse uma sentença! Veja bem, ninguém se apresenta dizendo: sou médico... Sou gay... Mas, a sociedade lhe trata diferente quando você se coloca na contra mão. O rótulo só será menor se você souber lidar de forma amadurecida sobre o assunto.

A melhor coisa nesse momento é você entender o que se passa com o seu corpo. Entender as suas reações e se tudo não passa de uma insegurança. Se você se der conta que é gay, é bom saber o que enfrentará e procure sempre conversar com pessoas que possam te ajudar.

Bem... Então qual é o dilema?

Existe por parte de nós educadores a tendência de tratarmos desse assunto de forma ingênua e até com uma postura de que tudo sabemos. E na verdade nada nos garante essa sabedoria, por muitos motivos, mas um deles me parece primordial, a falta de vivência. Quando não vivemos o assunto, nos parece fácil falar sobre o mesmo. Quando não nos envolvemos com a realidade, tudo nos parece fácil. E como ajudar numa hora dessas? Parece-me que a melhor saída é sermos um bom ouvinte. Aconselhar até podemos, mas não devemos passar daí. Afinal, todos têm direito a privacidade. Para se garantir um bom diálogo é necessário deixar de lado os julgamentos, as críticas e saber ouvir sem preconceitos. É necessário ter a clareza também que uma vez feita a sua opção de ser gay, nada irá influenciá-lo a mudar.

A homossexualidade é algo discutido há milênios. Já sabemos que não é doença, a homossexualidade é um dos caminhos possíveis que o desejo sexual pode percorrer. Dito dessa forma parece até que o problema torna-se menor. Infelizmente, isso não diminui a angústia de quem se percebe gay. Quando você percebe que não viverá como a maioria, que não desfrutará da mesma liberdade, a coisa pega. Tudo começa com a família que logo passa a te olhar meio torto... Já acompanhei casos em que a família se declara que suportariam muitas coisas, menos o filho ser homossexual.

A maior preocupação dos jovens hoje é como manter um relacionamento gay de forma saudável e duradoura. Parece-nos que essa preocupação só ocorre com os heterossexuais, mas não é verdade.

A maior insegurança é não virar notícia, é não ser um caso a mais. E para que isso não aconteça, é necessário se dar conta que a discrição faz parte em qualquer assunto amoroso, pois vale para qualquer sexo. Ser distinto, discreto, amável, respeitoso, são ingredientes que qualquer par se rende a um romance. Não é necessário sair espalhando aos quatro ventos que sou homossexual, isso não ajuda em nada. A melhor maneira de se viver a sua sexualidade é sendo respeitoso com todos.

Ser homossexual é apenas uma maneira diferente de ser. As diferenças são importantes e devem ser respeitadas em qualquer lugar onde esteja. E a sua intimidade só diz respeito a você.

A melhor forma de olhar o assunto é você se colocar no lugar dele. Afinal, como seríamos se nos descobrisse sendo parte desse universo? O que pensas a respeito?

Por isso e nada, além disso, nos surpreende o que o outro pensa e sim o que pensamos a respeito. E educar não depende só de nós educadores, mas sim de um contexto maior, que envolve a família e a sociedade.

Por: Natalícia Alfradique

domingo, 16 de maio de 2010

“ Educar falando de sexo” - Rosely Sayão

"Eu penso muito no Paulo Freire. Uma vez ele me disse: 'Os psicólogos precisam de um bom pretexto pedagógico para conversar com as pessoas.'
Eu achei um, que é o sexo."

   
 


Ao ler seus artigos e assistir às suas palestras, tem-se a impressão de que se desaprendeu a dizer não. Os pais lhe perguntam como dizer não aos desejos dos filhos e as garotas querem saber como dizer não ao namorado quando não se sentem preparadas para iniciar a vida sexual...


Primeiro, quero diferenciar o não dos pais do não das garotas. O não do pai para o filho supõe ele declinar do seu papel de educador. Educar significa saber quando dizer não e quando dizer sim. A gente tem filhos, e eles não nascem educados nem se auto-educam. Eles dependem dos pais. A dificuldade dos pais dizerem não se deve, eu acho, ao fato de a vida dos filhos estar muito limitada. Não há mais infância, tempo ocioso, possibilidade de brincar, de ter prazer. As crianças hoje têm agenda: ir para a escola, para o inglês, depois para a natação. Então, os limites, que seriam os construtores da educação, causam constrangimento aos pais.

O não da garota, eu acho que tem a ver com a história da submissão, da relação de poder entre os gêneros. Elas não sabem disso, mas arcam com esse preço. É por isso que eu acho tão importante a educação sexual na escola. A escola é o espaço onde os profissionais deveriam estar preparados para discutir isso. As mães dessas garotas também não sabem disso, portanto não têm a chance de discutir. Não precisa ser aula de educação sexual. Na aula de história, ou com um texto de literatura, pode-se discutir isso.

Você acredita que os pais estão declinando de seu papel de educadores. Como você vê essa confusão que há na cabeça de pais e professores a respeito da divisão de responsabilidades na educação? Um acaba tomando a posição que caberia ao outro...

E ninguém — nem a escola, nem os pais — assume a sua. (risos) Tanto a família quanto a escola devem educar. A família tem que educar para que seu filho aprenda a ser humano. Porque a gente não nasce ser humano, a gente nasce filhote. O que significa ser humano? Significa perceber que existem relações familiares, que existe respeito, que há afeto envolvido — o que supõe amor e ódio —, que existem expectativas. Ensinar as tradições, os princípios, a moral dessa família, isso é ensinar a ser humano. Agora, os pais não têm como ensinar os filhos a se comportar em um espaço público. Isso é dever e obrigação da escola. É só na escola que a criança tem condições de aprender, democraticamente, a viver no espaço público. Então, a escola que chama os pais para dizer que lá seu filho não tem limites é uma escola incompetente.

Além da relação família/escola, dá para perceber que outra divisão de responsabilidades é cada vez mais cobrada. Há a cobrança do garoto para que a garota também traga camisinha e o engravidar no plural, pois não é a garota que engravida, é o casal.

É, as pesquisas sobre gravidez precoce sempre são publicadas no feminino... Mas é o homem que determina os rumos da vida sexual, não é o casal. Até a anatomia ajuda um pouco. Se o homem não tem ereção, não tem transa. Para a mulher, basta abrir as pernas. E eles acham que isso tem uma justificativa da natureza, e não tem! Mas é difícil, para a mulher, até por conta da educação que ela recebe, assumir a sua parcela de responsabilidade. Ela prefere ir no rumo que o homem aponta, e isso significa não se cuidar, não ter a sua camisinha.

Outra pergunta que lhe fazem é: como conter o desejo sexual? Há uma constatação de que o sexo anda banalizado... O fato de que os jovens ultrapassaram os limites e de que alguma coisa deve ser feita manifesta-se até no plano legal, quando se cogita baixar a maioridade penal... Você acha que falta diálogo para dividir as responsabilidades e preservar os limites?

Não é falta de diálogo. Quer dizer, depende da idade. Acho que é falta de educação mesmo. Se tem uma coisa que me irrita profundamente é entrar num restaurante, num domingo, e esperar por uma mesa, esperar para ser servida e esperar pela conta. O almoço dura três horas! Eu vejo as famílias com crianças pequenas, que não conseguem suportar aquilo. E o que acontece? Elas começam a subir, a derrubar, tudo que é natural que elas façam. Aí os pais dizem: "Filho, não faça isso, não faça aquilo." Não é assim que se contém o comportamento. É falar e trazer para o colo, segurar. Não tem outro jeito. Agora eles esperam que os filhos ajam como adultos, ou seja, escutem e obedeçam. E depois os moleques não conseguem segurar o tesão. É porque não aprenderam...

É o mesmo que acontece quando se manda as crianças dormir...

Exato!

Um de seus artigos recentes trata justamente dessa repressão, desse conter. Esse é um problema também dos professores, de todo mundo...

Outro dia eu estava em uma reunião só de professores. Uma professora disse que tinha um aluno que tirava a roupa, ficava pelado, se masturbava. Eu perguntei se ela já tinha conversado com ele, se já tinha discutido sobre as regras. Ela falou que já, e eu perguntei que idade ele tinha: três! (risos) Ele está fazendo tudo que tem direito. Eu digo sempre que os encontros que tenho com alunos é uma brincadeira. Daqui a três, quatro dias, eles já esqueceram tudo que a gente conversou. A parte séria começa quando eu vou falar com quem realmente educa esses jovens. Educar é um processo, acontece diariamente, e não num encontro uma vez por ano. Os filhos chegam à noite e querem pais, e os pais querem paz. Não pode.

E o fato de os pais não aprenderem a controlar...

Os pais não ensinam. Mas eles aprenderam na marra, no autoritarismo...

Enfim, a falta de controle pode gerar conseqüências sérias na vida do jovem: uma gravidez precoce, uma DST. O curioso é que muitas das perguntas deles são sobre o depois, sobre como remediar, sobre a pílula do dia seguinte. Além disso, fazem muitas perguntas sobre aborto...

Deixe-me aproveitar para falar sobre isso antes que eu me esqueça. A obrigação do adolescente é pensar no presente. A obrigação dos educadores é pensar no futuro, preparar e acompanhar o educando. Só que os educadores não estão pensando no futuro. É por isso que o adolescente pensa sempre no pós, depois que já aconteceu. O futuro não faz parte da vida deles. Eles não conjugam o verbo em três tempos, só no presente.

Ao se constatar isso, que eles só conjugam o verbo no presente, será que não é o caso de se repensar certas coisas? Os postos de saúde, as escolas, talvez, não deveriam distribuir preservativos, como acontece em alguns países?

Eu prefiro apostar na prevenção. Se a gente começa a distribuir camisinhas, pílulas, a gente está estimulando a prática não-consciente, irresponsável. A gente tem que apostar na autonomia, na liberdade de escolha. Porque, se tiverem isso, vão achar a camisinha em algum lugar e, se não acharem, não vão transar.

É verdade, mas a prática de muitos países consiste em facilitar ao máximo a obtenção da camisinha, de uma forma que não existe no Brasil, como vender no metrô, na casa noturna, na rua, onde o jovem está. Não só na farmácia, aonde ele tem que ir... Você, que convive com isso há muito tempo, acha que essa mentalidade de tornar a camisinha um produto do cotidiano, do dia-a-dia, está avançando no Brasil?

Ainda não. Eu participei do lançamento aqui no Brasil da máquina de vender camisinha. Foi lançada em boates, em bancas de revistas, lugar só de moçada. Em menos de três meses, as máquinas estavam destruídas. A mesma moçada destruiu. Não adianta a gente distribuir preservativo se a gente não apostar na educação. Eu acho que a gente está um passo atrás na educação. Se a gente conseguir superar esse passo, que é o mais difícil, aí disponibilizar camisinha é muito fácil, muito fácil. O governo pode fazer isso que é uma beleza. Todo carnaval ele distribui milhões de camisinhas. Só que não adianta, o pessoal não usa.

Isto é chocante: você cita uma garota que estuda em uma escola particular, em um grande centro urbano, que tem concepções totalmente erradas, que diz que o coito interrompido basta...

Não tem a ver com a informação, com o conhecimento. Tem a ver com a maturidade. Uma coisa é você saber, outra coisa é saber usar a informação com sabedoria. E a diferença entre uma e outra é a formação, é a responsabilidade.

A mídia faz algo semelhante: dá informação, mas não educa...

Ela não tem a obrigação de educar. Mas ela está num contexto sociocultural e tem obrigação de contextualizar o sexo. Quando especialistas da minha área — médicos, psicólogos — vão à mídia e um adolescente diz que transa com a irmã, eles falam: "Olha, converse com fulano de tal, você está com um problema psicológico." Que é isso?! E a questão social não é tratada?

Mas, então, como deixar esse papel de só informar, de só passar informação, que é um papel que as escolas também assumem?

Contextualizando as questões. O adolescente descobre a sexualidade por impulso interno, por tesão. Agora, tem que perceber que a sexualidade dele não depende apenas do indivíduo, que está dentro de um contexto social, cultural, de época, de região. Cabe à escola discutir essas questões. À família cabe dizer: "Você só vai transar depois do casamento, isso é o certo." Ela tem obrigação de fazer isso, ou seja, de ensinar aquilo em que acredita. E a escola tem que confrontar o filho com seu pai. Olha, tem famílias que pensam assim, tem famílias que pensam de outro jeito. Tem que trazer os parâmetros da moral e ajudar os alunos a tomar suas próprias decisões. Mas a escola tem medo de fazer isso, não é? Tem medo dos pais não gostarem. Então, a escola está também declinando do seu lugar.

Isto é algo que você procura fazer: confrontar todas as informações para não dar a sua opinião pessoal. Não seria isso que o professor teme?

É, o professor não é preparado, mas o professor está numa escola que tem o seu projeto pedagógico, que tem uma filosofia. O que eles temem é assumir essa responsabilidade.

Pois é, mas é um dos temas transversais...

Pergunta aqui na escola quem leu. É um dos melhores textos que eu já li.

Isso de a escola tomar uma posição que desagrada aos pais também ocorre porque os pais tendem a defender demais o filho, a não reconhecer quando ele está sem razão. Assim, o filho não arca com o que faz. Você diz que essa pode ser uma explicação para tanta gravidez precoce no Brasil. Esses adolescentes não pensam nas conseqüências, sabem que o pai vai bancar...

A gente percebe que isso tudo é decorrência do desequilíbrio na relação família/escola. A escola deveria tratar disso como parte do processo de ensinar o filho a se tornar cidadão. Então o pai vai dizer: "Você falou de sexo?" E a escola deveria responder: "Falei. Por que você não vem questionar a geometria que eu estou ensinando?" Isso tem que ser uma coisa normal. A escola é a grande chance de ensinar a garotada, porque em casa ela tem que ser moralizada mesmo.

E, nesse caso, como fica o diálogo com os pais sobre sexo? Você desestimula esse diálogo?

Eu não desestimulo a falar sobre sexo. Eu desestimulo a falar sobre a vida sexual, sobre a vida privada. É diferente. Se a gente andar, sei lá, um quilômetro, a gente vai achar um monte de coisas que permitem falar sobre sexo. Um outdoor mais erótico, uma capa da Playboy na banca. Os pais podem falar sobre isso, sobre a novela. Ah! Eu acho isso, eu acho aquilo. Idéias, opiniões, pensamentos, princípios, isso eu estimulo.

Quando você recomenda evitar falar da vida privada, supõe que os adolescentes tenham autonomia sobre sua vida sexual. Mas eles parecem um pouco perdidos, pois fazem muitas perguntas sobre a idade ideal para começar a vida sexual, não é? Eles se sentem pressionados a fazer o que seus colegas já fizeram e acabam ficando meio inseguros...

Os pais não percebem, mas eles ajudam nessa pressão também. As escolas também fazem parte disso sem perceber. Quantas vezes eu entro numa escola e vejo a criançada da educação infantil fazendo uma apresentaçãozinha com o disco do Tchan. A escola está autorizando essa precocidade, está abortando a infância. Outro dia eu fui dar uma palestra numa escola e, por puro acaso, era Dia dos Namorados. A criançada estava saindo e vi um aluno do pré com um presentinho na mão. Eles não consideravam isso um problema. Eu cheguei para os professores e disse: "Se, aos dez anos, alguém engravidar, vocês vão achar que não têm nada com isso."

Um artigo publicado em nosso portal chama-se Ivo nem Viu a Uva e já Segura o Tchan... (risos)

 Essas crianças que a gente vê nas ruas... Eu vejo meninas vestidas de mulheres. Se a menina engravida, a mãe vai ficar horrorizada. Outra coisa que a escola não pensa: ela começa a tratar do aparelho reprodutor na terceira série. Depois, não quer que as meninas engravidem. Claro que engravidam. É assim que se aprende. Não tem que ensinar o aparelho reprodutor na terceira série. Nessa fase, as crianças têm questões que, se não forem respondidas adequadamente, podem se transformar em angústia. Eu tenho até uma piada sobre isso:

"O Joãozinho ouviu na escola uma história muito estranha do que era trepar. Chegou em casa disposto a tirar isso a limpo. Então perguntou:

— Vó, como é que eu nasci?

— A cegonha que trouxe.

Ele pensou mais um pouco e disse:

— Vô, como é que eu nasci?

— Ah! Seu pai e sua mãe encomendaram você ao Menino Jesus como presente.

Ele falou pro pai, pra mãe, e cada um veio com uma história. Aí ele disse:

— Mas ninguém trepa nessa casa?" (risos)

A gente acha que a criança é muito inocente. Ela não é, ela precisa de trabalho com respeito. Aí eu tenho uma segunda piada:

"O outro Joãozinho vai pra escola, volta e, na hora do jantar, fala assim:

— Ô mãe, de onde eu vim?

A mãe olha para o pai e diz:

— Ih! Chegou a hora.

Eles começam a explicação, da sementinha, do ovinho. Aí o Joãozinho fica louco para falar. E o pai:

— Calma, depois que a gente explicar tudo, aí você pergunta o que você quiser.

Depois que eles terminaram a explicação, o Joãozinho falou:

— Pai, isso eu já sei faz tempo. Não era isso que eu queria saber. É que na minha escola tem gente que veio de Jundiaí, de Santos. E eu? De onde eu vim?" (risos)

Esta é a questão do adulto com a criança: ouvir o que ela quer saber. Nenhuma resposta vai se tornar algo precoce se a gente ouvir o que ela pergunta.

Neil Postman, que fez um estudo da história da infância, diz que, na Idade Média, as famílias viviam em um só cômodo. Então, as crianças sabiam de tudo desde cedo, sexo inclusive. Ele crê que atualmente o que coloca as crianças em pé de igualdade com os adultos em termos de informação é a tevê. Você parece se questionar sobre sua responsabilidade diante dessa precocidade, pois foi uma das primeiras pessoas a falar sobre sexo com adolescentes.

É, eu fico preocupada. (risos) As pessoas pensam que eu sou sexóloga. Não sou. Na verdade, o sexo, para mim, é um pretexto pedagógico. Eu penso muito no Paulo Freire. Uma vez ele me disse: "Os psicólogos precisam de um bom pretexto pedagógico para conversar com as pessoas." Eu achei um, que é o sexo. Eu não falo de sexo, eu uso esse tema para educar. Eu comecei em 89, no jornal Notícias Populares, no qual continuo até hoje. Aí no Folhateen, a coisa pegou fogo. Eu criei uma linguagem. A Marta [Suplicy] falava pênis, vagina, na televisão. Mas eu quis ir mais longe. Quis aprender a linguagem deles, mas mantendo minha posição de profissional e adulta. Eu vejo um monte de profissionais falando que "tá tudo bem" por aí. Eu fiquei assustada porque eles copiaram um estilo de comunicação, mas não entenderam minha proposta.

Você mantém a seriedade...

Da minha postura, não abro mão. Justamente por isso que não vejo problema nenhum em falar sobre o que o adolescente quiser. Às vezes eles vêm com piadinhas, mas eu procuro achar uma moral na história. Mas tem um pessoal que parou no primeiro momento, no da linguagem. Os programas que tenho visto viraram um "auê" danado. Aliás, se você prestar atenção no pronto-socorro do meu site, vai ver que tem muita gente que não está com cabeça para fazer o que está fazendo. Então é melhor parar. Eu recebo muitas críticas de adultos dizendo: "Nossa, você é moralista." Mas o adolescente está pedindo isso. Ele me manda uma pergunta pedindo orientação.

Como quando as adolescentes lhe escrevem perguntando se sexo é amor, não é?

Elas aprendem isso, coitadas. Os pais acham que, dizendo isso, vão ajudar a controlar um pouco, vão fazê-la esperar "o homem da sua vida". Mas a adolescente se apaixona de manhã por um e de tarde por outro. E é um amor intenso.

Mas há (ou estaria faltando) espaço para se falar de amor nos cursos de educação sexual ou na mídia que se propõe a dar orientação sexual?

Amor não se discute. Amar se aprende sendo amado e não ouvindo falar de amor. Se os pais se relacionam com os filhos com amor, se a escola tem respeito por esse sentimento, a escolha é deles. Não tem jeito de falar do amor, a não ser usando a filosofia ou nossa experiência pessoal. O que é amor para você? O que é amor para mim? São coisas completamente distintas.

Mas como fugir desse discurso da mídia que vê a sexualidade apenas como genitalidade?

Sexo não é genitalidade. Isso é um produto vendido pela mídia que a gente está comprando sem perceber. Agora, amor não entra na história. Não tem como você ensinar uma pessoa a ter afeto. Não tem que falar de amor, tem que amar. Aí a pessoa vai valorizar esse sentimento. Por isso, eu não acho que a mídia seja a vilã. Mais perniciosa que a presença da televisão é a ausência dos pais.

Você acha que adianta alguma coisa anunciar para que faixa etária os programas são adequados?

Eu adoraria ter uma solução. Eu ainda não sei qual é, mas acho que essa proposta já é um passo. Não existem filmes proibidos para menores de 18 anos? Então em casa também deve ter horário para assistir aos programas.


 

Fonte: http://www.educacional.com.br/entrevistas/