terça-feira, 6 de abril de 2010

“ Foi apenas um sonho”- Richard Yates

Não me canso de assistir esse filme. Cada vez que o vejo, reconheço nele algo que não havia percebido.Um belo filme, que deve ser assistido por todos!

Transcrevo abaixo um resumo. Quem quiser conferir, poderá escolher o livro e/ou o filme. As duas leituras são imperdíveis.

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O longa-metragem é baseado em um romance de sucesso, publicado por Richard Yates em 1961. A novela focaliza o apocalipse conjugal de um casamento típico de integrantes da classe média norte-americana. Abrindo caminho através de um enredo amargo e angustiante, Yates foi capaz de encapsular toda a melancolia que existe por trás da paisagem idílica do subúrbio típico dos EUA – aquelas casas amplas, sem cercas, com gramados verdejantes e balanços dependurados nas árvores, onde as famílias burguesas vivem habitualmente, nos arredores das grandes cidades. Trata-se de um clássico contemporâneo da literatura dos EUA, um romance respeitado em todos os círculos intelectuais, eleito em 2005 pelos críticos da revista Time como um dos 100 livros mais importantes do século XX. Uma obra assim, claro, teria que receber em Hollywood um tratamento solene com a palavra "Oscar" carimbada em cada centímetro de celulóide. E assim foi feito.

Esta roupagem de Oscar é um elemento que pode, simultaneamente, atrair e provocar repulsa em porções distintas do público. Muita gente vai ao cinema exatamente para conferir esse tipo de produção. Outro tanto deixa de ir pela mesma razão. Ambos estão errados. Boas histórias, que lidam com temas importantes, podem ser feitas com migalhas ou fortunas. O que importa, na realidade, é o calibre da equipe criativa envolvida. E talento é algo que "Foi Apenas um Sonho" tem de sobra. Ao longo das duas horas de projeção, ambos são corroídos por um drama pungente, por circunstâncias sociais que amarram uma camisa-de-força cada vez mais apertada em torno de um casamento claramente fracassado.

Frank Wheller (DiCaprio) é um vendedor de seguros insatisfeito com o emprego, embora o salário razoável lhe permita sustentar uma vida confortável para a mulher April (Winslet) e os dois filhos. Ela é uma atriz frustrada que não deu certo na carreira e se tornou dona-de-casa. A trama de passa em Connecticut (EUA), em 1955. O casamento não vai bem. Sam Mendes expressa isso através de tomadas longas que ilustram visualmente a rotina chata da vida do casal. Uma seqüência especialmente plena de significados mostra Frank indo para o trabalho. Ele desce do trem no meio de uma multidão de trabalhadores como ele, todos vestidos da mesma maneira – ternos e chapéus cinza, camisas brancas, gravatas pretas, pastas negras na mão direita, jornal debaixo do braço. O recado é claro: ele é igual a todo mundo. Nem melhor, nem pior. E não há nada mais frustrante, para alguém que se acha especial, descobrir que nada tem de extraordinário.

O tema do vazio existencial da classe média norte-americana é expressado na história através de um conflito universal. Frank e April, como milhões de pessoas ao redor do mundo, seguem construindo para si uma vida guiada por necessidades práticas, que pouco a pouco os afastam dos sonhos e desejos mais íntimos. O conflito que move os personagens é reconhecível por qualquer pessoa comum: o que fazer quando percebemos que somos prisioneiros de uma vida da qual não gostamos? Devemos sacrificar uma existência confortável em nome de desejos secretos que talvez não sejamos capazes de realizar? Ou é melhor enfrentar a realidade com os olhos abertos, deixar os sonhos para os devaneios íntimos na hora do chuveiro e usufruir o conforto daquilo que conquistamos, mesmo sem prazer? É melhor brilhar como fogo e sumir rápido ou desvanecer aos poucos?

O retrato traçado por Sam Mendes, que vem se especializando na crônica afiada da vida suburbana nos EUA (são abundantes os pontos de contato entre "Foi Apenas um Sonho" e "Beleza Americana", a vitoriosa estréia cinematográfica do diretor), nos mergulha na intimidade do casal, fazendo-nos compartilhar com eles a angústia de uma situação para a qual não existe solução sem dor e perdas. Em certo momento, Frank e April se entregam à fantasia (infantil?) de largar tudo e ir morar em Paris, decisão corajosa que provoca inveja e admiração em todo o círculo de amizades do casal. Só que a realidade logo os traz de volta à vida. O roteiro, escrito por Justin Haythe, inclui um coadjuvante importante (interpretado com vigor por Michael Shannon), cuja função narrativa é comentar criticamente os duros dilemas enfrentados pelo casal, convenientemente em cenas que se passam durante jantares de sorrisos falsos, um dos clichês mais comuns dentro das crônicas de costumes realizadas nos EUA.

Sam Mendes, que veio do teatro, mostra ser um homem dos palcos. Sua maior virtude é a direção de atores, todos perfeitamente integrados aos respectivos papéis. A direção de arte também funciona muito bem, especialmente graças à caprichada paleta de cores neutras, em tons pastéis, escolhida para a ambientação do filme. Todos os cenários (curiosamente, grande parte do longa foi feito em locações reais, o que valoriza ainda mais o trabalho do fotógrafo Roger Deakins e da equipe do design de produção) são dominados por cores mornas, amorfas – cinzas e marrons sem brilho, sem fogo, sem intensidade. Nada de cores vivas que expressem emoções fortes, como vermelhos e amarelos. Essas cores são intencionalmente eliminadas das imagens, de forma que a atmosfera do mundo dos Wheller reflita visualmente a rotina preto-e-branco de suas vidas. Apenas a personagem de Kate Winslet quebra essa regra. As tonalidades verdes e azuis dos vestidos ainda são discretos, mas parecem implorar para aparecer, embora sem conseguir. Exatamente como a personagem.

O diretor demonstra sutileza na condução do roteiro, ao realizar uma bem disfarçada mudança de ponto de vista no meio do segundo ato. A narrativa, até então mostrada do ponto de vista do homem, subitamente muda para o ponto de vista da mulher, a partir de certo acontecimento que altera radicalmente o rumo da história. Mendes também usa o som de maneira criativa, seja na construção de um universo sonoro que remeta o espectador à década de 1950 (com canções incidentais e também com a discreta e inquietante trilha sonora de Thomas Newman), seja realçando silêncios (como na tomada final) ou amplificando ruídos para enfatizar aspectos emocionais da narrativa. Um dos melhores exemplos está logo no início, na longa tomada que mostra o casal indo embora do teatro, após a fracassada apresentação que sepulta a carreira de atriz de April. Eles atravessam um longo corredor em silêncio. A câmera baixa, junto ao som ribombante dos passos de ambos, injeta na cena uma dramaticidade quase insuportável. Em um único plano, percebemos que a grande tragédia desses personagens é que eles pensam que se amam, mas não. Eles não se amam. E aprenderão isso da maneira mais dolorosa possível.

- Foi Apenas um Sonho (Revolutionary Road, EUA, 2008)
Direção: Sam Mendes
Elenco: Leonardo DiCaprio, Kate Winslet, Michael Shannon, Kathy Bates
Duração: 119 minutos

Fonte: www.blog.roteiro/

Um comentário:

Neli disse...

Natalícia, mais uma vez estás de parabéns pela elaboração e conteúdo da matéria em questão, de forma abrangente e rica em detalhes e informações. Fiquei com vontade de assistir ao filme após a leitura da mesma. Tenho desenvolvido um trabalho crítico em meu alunato sobre ao conhecimento e aplicação da análise estrutural de narrativas, envolvendo não só livros como filmes. O objetivo é que possam ter o senso crítico diante da demanda de mudanças da sociedade em que vivem no presente e no futuro.
Um forte abraço,